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Capítulo 11 - Dedos

  O cheiro forte de ervas e álcool pairava no ar enquanto o curandeiro passava a esponja úmida sobre a pele de Nwyn, removendo o sangue seco e revelando os hematomas espalhados por seu corpo. O contato era frio e metódico, sem qualquer gentileza, mas também sem crueldade. O homem trabalhava em silêncio, analisando cada machucado com um olhar treinado, o cenho franzido em avalia??o.

  — Nada além do esperado, considerando o que passou — murmurou o curandeiro, deixando a esponja de lado. Pegou um pequeno frasco de vidro com um líquido espesso e esverdeado. — O corte na m?o já está estancado, o que é curioso. Normalmente, uma ferida como essa levaria mais tempo para fechar. Mas, fora isso, apenas os hematomas. O pior já passou.

  Nwyn ouviu as palavras, mas n?o reagiu. Ele sabia. Já sentia isso em seu corpo — a recupera??o muito mais rápida do que deveria ser. No entanto, n?o comentou. Nem com Garlei, nem com o médico. Apenas permaneceu ali, quieto, absorto em seus próprios pensamentos.

  O curandeiro pegou um pano limpo e o embebeu no bálsamo, passando-o sobre os machucados mais recentes. Nwyn sentiu o formigamento da substancia penetrando sua pele, mas n?o demonstrou desconforto. Quando o homem terminou, colocou o frasco ao lado da cama e limpou as m?os no avental.

  — Troque os curativos todos os dias e aplique o bálsamo. Vai acelerar a cicatriza??o — disse, erguendo-se e olhando rapidamente para Garlei. — Fora isso, descanso e comida decente devem bastar.

  Garlei, que estivera em silêncio até ent?o, assentiu com a cabe?a. O curandeiro recolheu seus instrumentos e saiu do quarto sem se despedir, como se sua presen?a ali já tivesse se estendido além do necessário.

  O silêncio se acomodou entre eles. Nwyn abaixou o olhar para as bandagens limpas em seu corpo, os dedos deslizando distraidamente sobre o tecido. Seu corpo estava inteiro outra vez, mas sua mente… isso era outra história.

  Garlei se afastou por um momento, abrindo um dos armários de madeira no canto do quarto. Remexeu algumas gavetas até puxar um conjunto de roupas dobradas. Voltou-se para Nwyn e estendeu as pe?as.

  — S?o antigas — comentou, com um certo constrangimento. — Mas s?o as únicas que v?o caber em você.

  Nwyn ergueu os olhos para ele e pegou as roupas sem protestar. O tecido era macio, gasto pelo tempo, mas limpo. Ele passou os dedos sobre a camisa, como se tentasse lembrar a última vez que vestiu algo que n?o estivesse sujo ou rasgado.

  — Obrigado — murmurou, ainda sem olhar diretamente para Garlei.

  Garlei co?ou a nuca, desviando o olhar. N?o sabia bem como lidar com o jeito silencioso de Nwyn. Depois de tudo, era estranho vê-lo assim… t?o distante, mesmo estando ali.

  — Vou deixar você se trocar — disse, pegando o frasco do bálsamo e colocando-o ao alcance de Nwyn. — N?o esque?a disso.

  Nwyn assentiu de leve, observando enquanto Garlei saía do quarto e fechava a porta atrás de si. Quando ficou sozinho, soltou o ar que nem percebeu estar prendendo.

  Ele encarou as roupas em suas m?os por um longo momento antes de finalmente come?ar a trocá-las

  Nwyn esperou até que os passos de Garlei desaparecessem pelo corredor antes de soltar o ar preso em seus pulm?es. O quarto estava silencioso, exceto pelo estalo fraco da madeira no fogo da pequena lareira.

  Com movimentos lentos, ele come?ou a desfazer os nós das faixas que envolviam seu tronco, puxando o tecido com cuidado. Cada camada removida revelava mais da pele arroxeada, marcada por hematomas profundos que se espalhavam pelos ombros, costelas e abd?men. Apesar da recupera??o acelerada, as lembran?as ainda estavam vivas na carne.

  Quando se viu diante do espelho, hesitou.

  Seus olhos percorreram a própria imagem refletida. O corpo magro, castigado pelos dias na pris?o, os cortes já cicatrizando, os músculos tensos como se ainda esperassem o próximo golpe. Os dedos tremeram ao tocar as próprias costelas, sentindo onde antes havia dor insuportável. Agora, só restavam vestígios.

  Seus olhos caíram para as m?os. As unhas quebradas, os dedos feridos e gastos de tanto arranhar pedra, de se agarrar ao ch?o tentando se segurar, tentando se salvar. Uma irrita??o crescente subiu pelo peito.

  Seu olhar caiu para a perna.

  O arrepio veio como uma corrente elétrica, percorrendo cada nervo do corpo.

  As m?os apertaram os próprios bra?os, e um gosto amargo subiu pela garganta. Ele piscou rápido, tentando afastar a sensa??o. Mas o corpo lembrava. O desespero. O medo sufocante. A press?o contra a pele.

  Um solu?o baixo escapou antes que pudesse impedir.

  Nwyn rangeu os dentes, cerrando os punhos ao lado do corpo. Raiva. Vergonha. O calor das lágrimas escorrendo pelo rosto n?o combinava com o ódio que ardia dentro dele.

  Ele fechou os olhos por um instante, puxando o ar com for?a antes de virar-se para a bacia de água quente. Com gestos rígidos, pegou a esponja usada pelo médico e a limpou.

  A água morna contra a pele foi um choque no início, mas logo trouxe um alívio discreto. Ele esfregou cada parte do corpo, limpando o suor e os resquícios de sangue seco, ignorando os tremores ocasionais que o atravessavam. Quando terminou, jogou a esponja de lado e voltou a encarar o espelho.

  E ent?o viu.

  Um brilho.

  Dourado.

  Vindo de seu próprio olho.

  O choque o fez recuar um passo, o cora??o disparado.

  O que…?

  Ele piscou, tentando entender. O brilho pareceu cintilar por um breve instante antes de sumir.

  O ar ficou preso em sua garganta.

  Sem pensar, avan?ou contra o espelho, inclinando-se para ver melhor. Mas tudo o que encontrou foi sua própria imagem. Seu olho estava normal. Nada de brilho.

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  Seus dedos tremiam quando ele levou a m?o ao rosto, tentando tocar a área.

  Nada.

  Ele franziu o cenho, esfregando a pele ao redor do olho, puxando a pálpebra para ver se algo estava errado.

  E ent?o…

  A luz piscou novamente.

  Desta vez, o susto fez com que trope?asse para trás. Seu pé bateu na borda da banheira, e num instante ele perdeu o equilíbrio.

  A água quente se derramou pelo ch?o quando Nwyn caiu, os joelhos raspando contra a madeira. O impacto foi forte o suficiente para arrancar um gemido baixo de dor.

  Respirando com dificuldade, ele se apoiou no ch?o, engolindo em seco antes de erguer a cabe?a de volta para o espelho.

  Dessa vez, n?o havia nada. Nenhum brilho.

  Somente seu reflexo.

  Nwyn vestiu as roupas com rapidez, ignorando as poucas dores que ainda se espalhavam por seu corpo. Ele n?o podia esperar mais. Sentiu a umidade das roupas em sua pele, mas o peso da necessidade de falar com Garlei o impeliu a agir. O frio da madeira sob seus pés o fez acelerar, sem dar aten??o à bagun?a que deixava para trás no quarto, com a água derramada ainda se espalhando pelo ch?o.

  Ele correu pelos corredores, seus passos rápidos e abafados no carpete espesso. A casa era grande, de madeira escura e bem cuidada, sem o luxo de castelos ou mans?es, mas com um cuidado que mostrava a importancia de quem ali vivia.

  Chegando ao segundo andar, Nwyn percorreu os corredores com o cora??o acelerado. Garlei precisava saber o que acontecera, ele n?o podia ficar quieto. Quando ouviu vozes à distancia, sua respira??o falhou por um instante, e ele se aproximou cautelosamente da porta.

  O silêncio foi quebrado por um barulho surdo, algo pesado sendo lan?ado contra a parede, seguido de um estalo seco e pungente. Nwyn parou, o cora??o disparando. Ele permaneceu ali, preso pela tens?o do momento, ouvindo o que viria a seguir.

  — Garlei, acalme-se! — A voz de uma mulher preencheu o silêncio, firme, mas sem perder a compostura.

  A resposta de Garlei veio carregada de frustra??o e fúria contida:

  — Eu n?o consigo! Eu... eu fui estúpido, tia. Me deixei levar pela raiva, agi sem pensar. Eu teria matado ele. Eu teria feito isso!

  A mulher suspirou. Sua voz se manteve fria, mas n?o sem peso.

  — Você sempre foi impulsivo, igual ao seu pai. — Houve um momento de silêncio antes de ela continuar. — Mas isso pode ser consertado. Vamos nos reunir com a Guilda e explicar o que aconteceu. Podemos resolver isso.

  O sangue de Nwyn gelou quando ouviu a resposta de Garlei, cuspida com raiva:

  — N?o! N?o pode ser assim! Isso tudo foi planejado! Eles usaram Nwyn como isca. A morte de um deles, o ataque... e eu ainda defendi um dos suspeitos e o trouxe para casa. Foi exatamente o que eles queriam. Agora têm tudo o que precisam para virar a cidade contra nós.

  Houve uma pausa tensa. Nwyn prendeu a respira??o, seus dedos apertando a moldura da porta.

  A mulher, no entanto, n?o pareceu surpresa. Sua voz manteve-se calma, mas cortante:

  — Garlei... Sei que você despreza a Guilda, mas eles s?o t?o donos da Central quanto nós. — Ouviu-se um leve ruído de vidro sendo recolhido, um movimento metódico. — E n?o v?o esquecer que também temos nosso lugar aqui.

  Garlei riu, sem humor.

  — E o que isso adianta? Eles podem ter sido os próprios assassinos. O caos que se instaurou só beneficia eles.

  A mulher n?o hesitou.

  — Por isso vamos agir com inteligência. Vamos convidar o Sem Dedos para um banquete amanh? à noite. Deixarei claro que estamos t?o interessados quanto eles em encontrar o culpado. Convocarei alguns nobres, pessoas de influência. N?o podemos nos dar ao luxo de agir apenas com impulsividade, Garlei. Vamos jogar com as cartas certas. Jogar de forma política.

  O silêncio preencheu o c?modo. Nwyn podia ouvir o som da respira??o de Garlei, pesada, furiosa.

  Ent?o, a mulher continuou, com uma decis?o inegociável na voz:

  — Nwyn também participará.

  Nwyn arregalou os olhos.

  — O quê?! N?o! — A indigna??o de Garlei foi imediata.

  — N?o vamos escondê-lo. Se alguém quiser falar com ele, que o fa?a sob os nossos termos. Vou garantir que fique claro: se quiserem conversar... — ela pausou, enfatizando a palavra — conversar, eles sabem onde encontrá-lo.

  — Ele já sofreu o suficiente! — Garlei rosnou. — N?o quero que passem por cima dele de novo!

  — Você perdeu o direito de decidir isso, Garlei. — A voz da mulher saiu cortante. — Nwyn estará presente. E você, a partir de agora, vai agir como o herdeiro que é.

  — Eu n?o posso ser esse herdeiro.

  O silêncio pesou no ambiente.

  Quando a mulher voltou a falar, sua voz era um pouco mais suave, mas sem perder a firmeza.

  — Pode e será. Você sempre foi um bom herdeiro... mas perdeu a raz?o por causa desse garoto. Eu n?o vou permitir mais imprudências. Preciso de você com a cabe?a no lugar.

  Do outro lado da porta, Nwyn engoliu em seco. Cada palavra parecia mais um peso sobre seus ombros, e ele sentia a tens?o aumentando no c?modo à sua frente.

  A mulher fez uma última pausa antes de finalizar, agora mais controlada:

  — Mas isso n?o significa que estamos perdidos. Agora, vamos dar um passo atrás e agir com cautela.

  Garlei abriu a porta com um movimento brusco, saindo do quarto ainda com o cenho franzido e os ombros tensos. No instante seguinte, parou abruptamente ao ver Nwyn parado ali, encostado na parede.

  Os olhos de Garlei se estreitaram.

  — O que você ouviu?

  Nwyn sustentou o olhar.

  — Tudo.

  Garlei soltou o ar pelo nariz, passando uma m?o pelos cabelos, claramente irritado, mas n?o com ele.

  — Vem, vamos comer alguma coisa.

  Ele come?ou a descer as escadas sem esperar resposta, e Nwyn o seguiu.

  A casa era grande, mas n?o ostentosa. Os corredores tinham móveis de madeira escura, simples, mas bem cuidados. A luz fraca das velas dan?ava nas paredes enquanto os dois atravessavam os corredores até chegarem à cozinha.

  Lá dentro, uma mulher estava terminando de limpar a mesa, os cabelos presos sob um len?o e as mangas arrega?adas. Quando viu Garlei, ergueu uma sobrancelha.

  — Alguma coisa, senhor?

  — P?o e algo pra ajudar a descer.

  Ela n?o discutiu. Pegou alguns p?es, biscoitos e copas, e trouxe também um jarro de água. Colocou tudo sobre a mesa e saiu, murmurando algo sobre "crian?as que n?o sabem a hora de comer".

  Nwyn sentou e pegou um p?o sem hesitar. A fome o corroía, e ele comeu em silêncio, mastigando rápido. Garlei apenas ficou ali, observando.

  O silêncio durou até Garlei se recostar na cadeira, cruzando os bra?os.

  — Ent?o... escutou sobre o banquete.

  Nwyn assentiu, engolindo um peda?o de p?o.

  — Sim. Eu vou participar.

  Garlei franziu a testa.

  — Você n?o precisa.

  — Eu quero. Se isso ajudar... eu quero.

  Garlei suspirou e desviou o olhar.

  — Como quiser.

  Por um momento, tudo o que se ouviu foi o som da mastiga??o de Nwyn e o estalo da madeira quando Garlei tamborilou os dedos na mesa.

  Ent?o, Nwyn perguntou:

  — Quem é o Sem Dedos?

  Garlei demorou um pouco para responder, mas quando falou, sua voz saiu firme.

  — Ele está no topo da Guilda. Um dos poucos que fazia parte dela quando ainda eram chamados de Os Dedos.

  Nwyn franziu o cenho.

  — Os Dedos. N?o lembro qual dedo os líderes tiravam.

  — O líder e seus conselheiros tiravam o anelar. Mas, com o tempo, as coisas mudaram... maioria deles, daqueles que participaram quando eram chamados Os Dedos, morreram, e ele foi o único que restou.

  — Por que ele é chamado assim?

  Garlei olhou diretamente para ele antes de responder:

  — Porque teve todos os dedos arrancados por inimigos. Um recado para a Guilda. Mas ele sobreviveu. E continuou comandando.

  Nwyn sentiu um arrepio na espinha.

  — E agora ele vai estar no banquete.

  — Sim. E vai querer respostas.

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