O frio era a primeira coisa que sentia. Umidade, cheiro de ferrugem e mofo, o ar pesado que grudava na pele como um len?ol sujo. A cabe?a latejava em um ritmo lento, mas n?o como antes. O torpor da dor havia sumido. Nwyn abriu os olhos devagar.
O teto de pedra escura estava coberto de rachaduras antigas, algumas delas tomadas por musgo e infiltra??es. A cela era pequena, claustrofóbica. As grades diante dele eram velhas, mas firmes. Nenhuma luz além da lamparina distante no corredor, projetando sombras longas e trêmulas. O silêncio era quebrado apenas pelo gotejar constante de água em algum lugar além das paredes.
Ele se mexeu, esperando que cada movimento fosse um soco no est?mago. Esperava sentir a dor voltar com for?a, mas n?o veio. As costelas, antes queimando em protesto, agora pareciam quase normais. A pele, que devia estar roxa e inchada, exibia apenas marcas esmaecidas, vestígios do espancamento. A surpresa tomou conta dele. Levantou a camisa, os dedos deslizando sobre a pele. O queixo se contraiu.
Isso n?o era normal. Pensou ele.
Respirou fundo, tentando entender. Ele sentia que n?o havia passado tempo o suficiente para se curar, talvez ainda fosse o mesmo dia. Algo dentro dele dizia isso. Cada movimento deveria ser um lembrete do que aconteceu, mas seu corpo n?o parecia se importar, como se o tempo tivesse dado um salto estranho enquanto dormia. Como se...
Um som leve, um movimento discreto na cela à sua frente. Ele ergueu os olhos.
Um homem estava ali, sentado contra a parede oposta, meio envolto na penumbra. Parecia velho, mas n?o frágil. A barba malcuidada escondia parte de um rosto marcado pelo tempo e por cicatrizes que pareciam histórias interrompidas. Os olhos eram afiados, atentos, mas sem pressa. Ele n?o se moveu de imediato, apenas observava.
Por um instante, nenhum dos dois disse nada.
Ent?o, o velho inclinou levemente a cabe?a e sua voz soou, rouca pelo desuso, mas carregada de algo sólido.
— Você sempre olha tanto assim para a própria barriga ou é algum tipo de supersti??o sua?
Nwyn abaixou a camisa devagar, franzindo o cenho. Ainda sentia a estranheza de seu próprio corpo, mas a presen?a daquele homem exigia aten??o.
— Achei que tava pior. — Ele respondeu, hesitante.
O velho ergueu uma sobrancelha, como se analisasse a resposta. Depois deu um suspiro lento e se ajeitou levemente contra a parede.
— Quem n?o acha? — Murmurou, mais para si do que para Nwyn. — Mas o tempo tem dessas coisas. às vezes, nos castiga. às vezes, nos dá uma trégua... e sempre cobra depois.
Nwyn manteve os olhos nele. Havia algo estranho naquele homem. Ele parecia confortável demais para alguém preso.
— é a pris?o de Central?
— Isso foi uma pergunta retórica? Pois te garanto que uma taberna n?o é. — Nwyn se aproximou das grades, tentando olhar os corredores. Seu rosto se espremeu ao máximo entre os ferros enferrujados, marcando levemente sua bochecha com uma cor alaranjada. Havia apenas escurid?o para os lados.
— Quando eu cheguei? — Disse o garoto, afastando-se das barras.
— Ontem. Menos de 24 horas.
— Está há quanto tempo aqui?
— O suficiente para ter respondido essa pergunta inúmeras vezes.
— Como chamo por um guarda? — Questionou o garoto, com esperan?as. Precisava explicar o que aconteceu, precisava de alguém que o escutasse.
— Você pergunta demais, garoto. — Respondeu o velho, passando a palma da m?o na testa, movendo os poucos cabelos e mostrando as entradas nas laterais. — Espere um pouco que um deles vai aparecer.
Nwyn franziu a testa. Precisava perguntar, como iria descobrir as coisas? O velho continuava olhando para ele. Estudando, lendo. O garoto era um livro para o homem, e Nwyn percebeu isso.
— E você n?o perguntou nada. — Nwyn observou.
O velho deu um meio sorriso, um canto da boca apenas se erguendo.
— E você queria que eu perguntasse algo?
O silêncio se instalou entre os dois por um momento. Nwyn n?o sabia se queria responder, mas o jeito despreocupado do homem o incomodava.
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— Por que estou aqui, talvez? — Ele perguntou, quase num desafio.
O velho n?o negou, nem confirmou. Apenas inclinou levemente a cabe?a para o lado.
— N?o preciso. — Resmungou com um tom cínico. — Sei o que qualquer um saberia. — Ele apontou com o queixo para as roupas de Nwyn, ainda sujas de sangue seco. — Um garoto entra aqui coberto de sangue e desmaiado na cela. N?o precisa ser um gênio para imaginar que alguém lá fora tá contando uma história ruim sobre você, já que n?o tem cara de assassino.
Nwyn sentiu a garganta secar. O velho o observava com paciência, como se esperasse que ele mesmo chegasse a alguma conclus?o.
— E n?o sou! — Disse ele, querendo que algum guarda também escutasse e fosse abrir a jaula. Ele parou por alguns segundos, pensando se talvez alguém acreditaria nisso. — O que você faz para passar o tempo?
O velho sorriu de leve, mas dessa vez havia algo diferente no olhar dele. Algo mais denso, mais gasto.
— O que qualquer um faz quando o mundo cansa dele. — Ele respondeu, enigmático. — Espera.
Nwyn franziu o cenho. O silêncio voltou, mas dessa vez n?o era inc?modo. Era como se aquele homem tivesse dito tudo o que queria. E agora, esperava para ver o que Nwyn faria com aquilo.
O gotejar da água no fundo da pris?o continuava.
E Nwyn sentiu que, pela primeira vez em muito tempo, alguém o estava ouvindo. O velho respirou fundo e recostou a cabe?a na parede, como se analisasse algo além das grades, além daquela pris?o.
— Você já parou pra pensar no que acontece depois? — A voz dele veio arrastada, sem pressa. — Quando sair daqui. Se sair daqui.
Nwyn ficou em silêncio.
— Todos querem sobreviver. Mas sobreviver pra quê? — Ele virou o rosto, os olhos escuros fixos nele. — Você tem um plano, garoto? Ou tá só seguindo o fluxo e esperando n?o se afogar?
Nwyn hesitou. Ele n?o sabia. Fugir era o primeiro instinto. Mas para onde? Para quê? Para Leny? A fazenda? A vida miserável? Engoliu em seco, sentindo-se irritado por n?o ter uma resposta e por, ao mesmo tempo, odiar a resposta.
— E você? Qual seu plano? — Rebateu.
O velho riu, um som seco e curto. — Meu plano? Fiz muitos. Alguns deram certo, outros n?o. E agora estou aqui, vendo o tempo passar. — Ele ergueu uma sobrancelha. — Se aprendi algo, é que planos s?o como correntes. Se forem fracos, se quebram. Se forem fortes demais, te arrastam para o fundo.
Nwyn n?o sabia o que responder. O velho apenas fechou os olhos por um instante.
— No fim, garoto, você vai ter que decidir. Quer ser o homem que nada, o que se deixa levar... ou o que puxa os outros pra baixo pra se manter à tona?
— Acho que ninguém vai sentir minha falta... — Nwyn soltou uma risada sem humor, os olhos fixos na parede à sua frente. — Nem Leny. Se eu sumir daqui, ele vai voltar pra fazenda e continuar com a vida dele. A única coisa que ele vai sentir falta s?o as moedas... que est?o. Ou estavam comigo.
O velho n?o se apressou a responder. Apenas olhou pra ele com uma express?o meio torta, como se estivesse esperando que o garoto terminasse de falar tudo o que tinha na cabe?a. E, no fim, disse:
— E quem é esse tal de Leny?
Nwyn parou por um momento, os pensamentos girando na cabe?a. Ele n?o sabia direito como explicar Leny. N?o conseguia resumir tudo o que sentia. Mas as palavras saíram, mesmo assim, como se tivesse ensaiado por anos, mesmo que n?o fosse a vers?o mais clara da história.
— Leny me encontrou quando era um bebê... em um riacho, perto de uma ponte de pedra. Eu estava todo sujo de sangue, envolto em panos ensanguentados... e... segurando um peda?o de máscara. Ele foi quem me tirou de lá.
Nwyn come?ou a tatear os bolsos do casaco, sem saber direito por quê, mas seus dedos procuravam desesperadamente pelo peda?o da máscara, o pano, qualquer coisa que fosse lembrar o que ele sentia quando estava naquele estado. Ele se sentou contra a parede, o vazio se espalhando por dentro. Nada. N?o havia mais nada ali. Apenas o espa?o vazio.
Ele respirou fundo, como se o próprio ar estivesse pesando.
O velho se aproximou das grades com passos lentos, os ombros encurvados pelo tempo e pelo peso de algo invisível. Sua m?o calejada deslizou pelos ferros enferrujados, testando-os sem pressa, como se já soubesse que n?o havia saída, mas quisesse sentir a certeza na ponta dos dedos.
— Você se sairá bem. — Murmurou, sem olhar para Nwyn.
O garoto permaneceu imóvel no canto da cela. O cheiro de umidade e ferrugem impregnava o ar, tornando tudo mais pesado, mais sufocante. Ele sentia os olhos do velho sobre ele, um olhar que parecia cavar fundo demais, como se quisesse arrancar algo que Nwyn nem sabia que tinha.
— N?o sei do que está falando — respondeu, e sua própria voz soou distante.
O velho soltou um ruído baixo, um riso sem humor.
— é o que todos dizem, no come?o. — Ele se virou devagar, os olhos carregados por uma paciência inquietante. — Nunca pare de perguntar.
Nwyn franziu a testa.
— O quê?
O homem suspirou, cruzando os bra?os.
— Meninos curiosos acabam mortos. Meninos que evitam perguntas... esses vivem tempo demais sem entender por quê, mas as vezes, alguns curiosos tem a sorte de sobreviver. S?o esses que descobrem a verdadeira vida.
Nwyn abriu a boca para responder, mas a batida seca de botas no corredor cortou suas palavras.
Os passos eram firmes, ritmados, ressoando entre as paredes de pedra. A luz amarelada das tochas tremeu quando a sombra do guarda apareceu diante das celas.
— De pé — ordenou, destrancando a grade com um som metálico arranhado.
O velho n?o se moveu. Apenas observou enquanto Nwyn se levantava, hesitante.
O guarda agarrou o bra?o do garoto e o puxou para fora, a press?o firme o suficiente para impedir resistência, mas sem pressa.
Nwyn lan?ou um último olhar para a cela enquanto era arrastado para o corredor. O velho o observava, com um olhar mais atento agora, como se estivesse vendo mais do que tinha para ver.
A caminhada pelo corredor foi longa, cada passo ecoando em paredes que pareciam se fechar ao redor de Nwyn.
O ch?o era frio, de pedra irregular. O cheiro de mofo e sangue impregnava o ar, tornando cada respira??o um lembrete do lugar onde estava.
O guarda à sua frente n?o disse nada. Apenas seguia em passos firmes, guiando-o por uma sequência interminável de portas e corredores estreitos. O lugar era um labirinto de escurid?o e ferro.
Por fim, o guarda parou diante de uma porta de madeira refor?ada com tiras de metal. Ele bateu duas vezes, pausadamente.
Um som abafado veio do outro lado.
A tranca se moveu.
O guarda girou a ma?aneta e empurrou Nwyn para dentro.
O silêncio tomou a sala, denso como o cheiro de mofo e sangue seco.